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Núimero 25

Críticas ao Principialismo sob a ótica donovo paradigma ético nos cuidados em saúde: o protagonismo do paciente

Críticas ao Principialismo sob a ótica do novo paradigma ético nos cuidados em saúde: o protagonismo do paciente

Criticisms of Principialism from the Perspective of the New Ethical Paradigm in Health Care: the Patient’s Protagonism

Aline Albuquerque*

Resumo

Este artigo tem como objetivo desenvolver críticas ao Principialismo com base no novo paradigma dos cuidados em saúde, bem como apontar para a necessidade de se formular uma nova bioética que tenha como objeto as questões éticas que emergem do cotidiano dos cuidados em saúde. Trata-se de pesquisa teórica baseada em marco teórico escolhido em razão de terem como escopo de trabalho a construção de novos aportes éticos para os cuidados em saúde a partir de uma visão crítica do Principialismo e da relação entre profissional de saúde e paciente. Concluiuse que é necessária uma Bioética dos Cuidados em Saúde, alicerçada no novo paradigma dos cuidados em saúde de modo a contribuir para que o encontro clínico entre profissionais e pacientes seja eticamente balizado por uma nova bioética comprometida com os avanços éticos e jurídicos alcançados pelos movimentos do Cuidado Centrado no Paciente, da Tomada de Decisão Compartilhada e da parceria entre profissional e paciente.

Palavras-chave: clínica, bioética, paciente, cuidado centrado, poder

Resumen
Este artículo tiene como objetivo desarrollar críticas al Principialismo a partir del nuevo paradigma del cuidado de la salud, así como señalar la necesidad de formular una nueva bioética que tenga por objeto las cuestiones éticas que emergen del cotidiano cuidado de la salud. Se trata de una investigación teórica, el marco escogido es también teórico porque su ámbito de trabajo es la construcción de nuevos aportes éticos a la atención de la salud desde una visión crítica del Principialismo y la relación entre los profesionales de la salud y los pacientes. Se concluye que es necesaria una Bioética de los Cuidados en Salud, sustentada en un nuevo paradigma del cuidado en salud. El objetivo es contribuir a que el encuentro clínico entre profesionales y pacientes sea éticamente orientado por una nueva bioética comprometida con los avances éticos y jurídicos logrados por los movimientos del Cuidado Centrado en el Paciente, la Toma de Decisiones Compartida y la colaboración entre profesional y paciente.

Palabras clave: clínica, bioética, paciente, cuidado centrado, poder

Abstract

This article aims to develop criticisms of Principialism based on the new paradigm of health care, as well as to point out the need to formulate a new bioethics that has as its object the ethical issues that emerge from the daily life of health care. It is a theoretical research based on a theoretical framework chosen because their scope of work is the construction of new ethical contributions to health care from a critical view of Principialism and the relationship between health professionals and patients. It was concluded that a Bioethics of Health Care is necessary, based on the new paradigm of health care in order to contribute that the clinical encounter between professionals and patients is ethically guided by a new bioethics committed to the ethical and legal advances achieved by movements of Patient-Centered Care, Shared Decision Making and the partnership between professional and patient.

Keywords: clinic, bioethics, patient, centered care, power

Introdução

A Bioética Clínica tem a função precípua de conferir ferramentas éticas para lidar com questões que emergem dos cuidados em saúde. Não obstante as críticas recebidas ao longo do tempo, o Principialismo, teoria formulada por Beauchamp e Childress (2019) fundada em quatro princípios e criada no final da década de setenta, ainda é o referencial bioético hegemônico na ambiência clínica. Ocorre que abordagens teórico-práticas no campo da saúde que rechaçam o distanciamento emocional do profissional, o modelo biomédico e o cuidado centrado na doença têm se fortalecido ao longo deste século, conformando um novo paradigma nos cuidados em saúde. Nesse novo paradigma, a relação humana entre o profissional e o paciente enquanto elemento essencial do cuidado e a proposição do enfrentamento de práticas que objetificam o paciente ou o reduzem à sua condição fisiológica têm sido entendidas como vetores éticos dos cuidados em saúde. Igualmente, no novo paradigma, o modelo de cuidado, no qual o paciente é o seu centro e a sua finalidade é o bem-estar e a qualidade de vida do paciente, tem adquirido espaço, denominado de Cuidado Centrado no Paciente (CCP). Assim, o novo paradigma dos cuidados em saúde é constituído pelo CCP, a participação e o engajamento do paciente, bem como pela assunção de que a relação de parceria entre profissional e paciente são seus componentes éticos. O que se nota é que o Principialismo não é um referencial que se ajusta a essas abordagens teórico-práticas mais recentes, nem endossa a importância da relação de parceria entre profissional de saúde e paciente. Assim, sustenta-se neste artigo que são necessários novos referenciais bioéticos, que reflitam as mudanças profundas que estão sendo feitas nos cuidados em saúde, como a superação do paternalismo do profissional de saúde e o enfrentamento da excessiva assimetria de poder presente no encontro clínico.

A emergência das doenças crônicas, tornando-se a principal causa de morte global, provocou uma mudança na direção da centralidade do paciente em seu cuidado, visando ao seu engajamento e à busca da sua qualidade de vida (Sullivan 2017). Acoplado a esse movimento, o CCP tem se espraiado como preferível eticamente, em razão de ser um modelo que situa o paciente como pessoa e agente moral, com suas necessidades, vontade e preferências respeitadas e delineadoras da tomada de decisão (Sullivan 2017). Desse modo, neste estudo tem-se como hipótese que o Principialismo não incorporou construtos éticos advindos do novo paradigma dos cuidados em saúde, que resulta, em grande medida, dos movimentos de contestação do poder médico e de luta pelo protagonismo do paciente no cuidado.

Como mencionado, a Bioética Clínica ainda tem como referencial hegemônico o Principialismo, formulado por Beauchamp e Childress (2019), a despeito de inúmeras críticas (Garrafa et al. 2016). Dentre as variadas críticas, chama-se atenção para as seguintes que estão presentes na literatura contemporânea e que se atrelam ao objeto deste artigo, quais sejam: (a) o Principialismo falhou no enfrentamento da desumanização do paciente na prática médica e do seu alijamento do processo de tomada de decisão (Jeffrey 2020); (b) o Principialismo tem como foco excessivo dilemas e problemas complexos, que não são o cotidiano da prática clínica (Churchill et al. 2014); (c) o Principialismo se dirige aos profissionais, estabelecendo comandos para a sua atuação, negligenciando a voz do paciente e a sua experiência (Scher & Kozlowska 2018). Em consonância com essas críticas, este artigo formula cinco eixos temáticos críticos ao Principialismo: (a) a distinção entre Ética Biomédica e Bioética dos Cuidados em Saúde; (b) centralidade do paciente; (c) assimetria de poder na relação entre profissional de saúde e paciente; (d) paternalismo e a objetificação do paciente; (e) direitos humanos como regras ético-jurídicas prima facie e a capacidade decisional dos pacientes. Registra-se que esses eixos críticos temáticos são originais e não se encontram em trabalhos prévios que objetivaram aportar análise crítica ao Principialismo.

Com efeito, as críticas ao Principialismo podem ser feitas a partir de diferentes perspectivas e referenciais (Garrafa et al. 2016), no presente artigo, será levada a cabo com base na abordagem do CCP e da participação do paciente, dos estudos sobre assimetria de poder e opressão nos cuidados em saúde, bem como dos direitos humanos dos pacientes. Em síntese, não se tem como intuito discutir diversos temas que são objeto de críticas ao Principialismo, tais como moralidade comum, o método de aplicação dos princípios ou se há predomínio de um ou mais princípios, mas demonstrar que o Principialismo não confere centralidade ao paciente, ignora seu papel na tomada de decisão, cria falsos dilemas éticos, porquanto confere ao profissional de saúde privilégio epistêmico e desconsidera os direitos humanos dos pacientes que se aplicam aos cuidados em saúde. Ademais, o Principialismo não parte do pressuposto de que a relação entre profissional de saúde e paciente é, por si só, um valor a ser preservado no encontro clínico.

Diante do exposto, enuncia-se que este artigo tem como objetivo desenvolver críticas ao Principialismo com base no novo paradigma dos cuidados em saúde, bem como apontar para a necessidade de se formular uma nova bioética que tenha como objeto as questões éticas que emergem do cotidiano dos cuidados em saúde. Trata-se de pesquisa teórica que se alicerça no entendimento de que esse tipo de pesquisa tem o propósito de construir e de reconstruir teorias, quadros de referência, condições explicativas da realidade, polêmicas e discussões pertinentes (Adom et al, 2022). Com base nesse entendimento do que seja uma pesquisa teórica, sob o prisma metodológico, foi escolhido determinados marcos teóricos para o estudo particular do objeto, procedimento que se distingue da pesquisa que se fundamenta numa revisão bibliográfica, portanto não envolve descrição de busca em bases de dados. Sendo assim, o procedimento metodológico adotado pela pesquisa teórica está baseado em referenciais relevantes para seu tópico de investigação (Organizing Academic Research Papers, 2022). Quanto ao marco teórico empregado nesta pesquisa, esse se estruturou com base nas pesquisas de Jeffrey (2020) que diz respeito a uma nova ética para os cuidados em saúde baseada na empatia; de Thesen (2005) sobre opressão nos cuidados em saúde e na pesquisa de Churchill, Fanning e Schenck (2014) acerca de uma ética clínica fundamentada na perspectiva do paciente. O marco teórico assinalado foi escolhido em razão de terem como escopo de trabalho a construção de novos aportes éticos para os cuidados em saúde a partir de uma visão crítica do Principialismo e da relação entre profissional de saúde e paciente.

O presente artigo se encontra estruturado em cinco partes: a primeira versa sobre a distinção entre Ética Biomédica e Bioética dos Cuidados em Saúde; a segunda trata da centralidade do paciente; a terceira aborda a assimetria de poder na relação entre profissional de saúde e paciente; a quarta aborda o paternalismo e a objetificação do paciente; e, por fim, tem-se como tema os direitos humanos como regras ético-jurídicas prima facie e a capacidade decisional dos pacientes.

Distinção entre Ética Biomédica e Bioética dos Cuidados em Saúde

O Principialismo é um referencial da bioética composto por quatro princípios, respeito à autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. Esses princípios são denominados pelos próprios autores de princípios de ética biomédica, cujo escopo abarca os cuidados em saúde e a pesquisa envolvendo seres humanos. Esse é o primeiro aspecto problemático do Principialismo, isto é, assemelha o paciente e o participante de pesquisa (Beauchamp, Childress 2019), tratando-os como sujeitos de direitos e atores éticos equivalentes. É patente que a condição de paciente é única, em razão da sua vulnerabilidade acrescida e da sua condição de saúde afetada. No mesmo sentido, a relação entre o paciente e o profissional de saúde é especial, inclusive a função curativa do profissional é destacada na literatura (Hojat 2016). O paciente é o protagonista do cuidado, cujas necessidades, vontade e preferências são os guias da tomada de decisão. “Ser um paciente é uma experiência interpessoal e moral única” (Churchill et al. 2014: 1). O participante da pesquisa, pode ser ou não paciente e, mesmo que vulnerável, essa vulnerabilidade não equivale à do paciente. Integrar uma pesquisa, cuja finalidade não é o bem-estar e a qualidade de vida do participante, pressupõe uma relação com os pesquisadores completamente distinta da relação entre profissional de saúde e paciente.

A equivalência entre o paciente e o participante, feita no Principialismo, sugere que: (a) não há no Principialismo o reconhecimento do papel central e singular que o paciente desempenha no cuidado e que a finalidade desse é o seu bem-estar e qualidade de vida; (b) não há no Principialismo um tratamento ético específico para a relação entre profissional de saúde e paciente. Desse modo, diante do novo paradigma nos cuidados em saúde, não se sustenta que os mesmos princípios sejam aplicados ao contexto dos cuidados em saúde e à ética em pesquisa, desconsiderando as especificidades do primeiro contexto, tais como, a assimetria de poder e de informação na relação entre profissional de saúde e paciente, o histórico de abusos de pacientes, a injustiça epistêmica e a vulnerabilidade emocional, física e cognitiva do paciente. Registra- se que a injustiça epistêmica, presente nos cuidados em saúde, segundo Fricker (2007), se refere aos modos pelos quais os pacientes podem ser vítimas de injustiças quanto às suas capacidades de saber e entender a si mesmos e o mundo que lhes rodeia. Com efeito, a injustiça epistêmica é uma minoração da capacidade de ser um sujeito epistêmico (alguém que conhece, pensa e questiona). Essa redução afeta o seu engajamento em práticas epistêmicas, como a de transmitir conhecimento (testemunho), intitulada de injustiça testemunhal, ou de dar sentido à própria experiência (interpretação), nomeada de injustiça hermenêutica (Crichton et al. 2017).

Outro ponto a ser assinalado diz respeito às questões éticas sobre as quais os quatro princípios são aplicados, ou seja, questões complexas e apartadas do cotidiano da prática clínica. Em consequência, constata-se que o Principialismo é um referencial não adequado para balizar eticamente a prática diária dos cuidados em saúde. Essa escolha do Principialismo se revela incapaz de responder aos problemas que predominam nos cuidados em saúde, como problemas referentes à relação entre profissional e paciente (Mirzoev & Kane 2018), tais como o recebimento de cuidado de forma mecânica e o desrespeito ao paciente (Kadhemi, et al. 2016), questões de segurança e de qualidade, bem como problemas de comunicação dos profissionais de saúde em relação aos pacientes (Harrison 2016).

Nesse sentido, a Associação de Pacientes do Reino Unido lista a comunicação como uma das principais questões objeto de reclamações dos pacientes. Com efeito, os relatos do paciente são comumente tidos como irrelevantes, confusos, muito emocionais, inúteis ou uma “perda de tempo” (Crichton et al. 2017). Isto é, na prática clínica, os pacientes ainda sofrem, por exemplo, com condutas paternalistas e a comunicação difícil, o que se revela muito distinto das situações-limite que o Principialismo evoca. Distintamente do que pontua Llerena (2012), o Principialismo não tem uma vocação prática, pois se distancia do paciente e do cotidiano do cuidado em saúde.

Além do Principialismo ter como objeto a ética em pesquisa, também se dedica a formular orientações éticas para a saúde pública, notadamente na sua formulação sobre o princípio da justiça, que traz reflexões e prescrições relacionadas à alocação de recursos sanitários, com base em teorias de justiça distributiva. Assim, constata-se que o Principialismo não é um referencial específico e especializado no cuidado em saúde, mas sim um referencial abrangente que busca tratar de uma diversidade de campos orientados por regramentos ético-jurídicos distintos, culturas diferentes, organizações e estruturas institucionais dessemelhantes, como hospitais, ministérios da saúde e comitês de ética em pesquisa. Diante desse largo escopo do Principialismo, ao paciente não é conferida voz ou posição de protagonismo, até mesmo porque o Principialismo está ocupado em ditar princípios e regras aplicáveis nos mais variados contextos.

Ainda, no que tange ao Principialismo, ter como foco a ética em pesquisa, salienta-se que seu “antecedente imediato e base germinal” (Llerena 2012: XIII) é o Relatório Belmont, de 1978, que trata de um marco geral de referência para a regulação da pesquisa científica envolvendo seres humanos. Assim, o Principialismo não foi pensado como uma ética própria dos cuidados em saúde, mas sim a partir da ética em pesquisa foram desenvolvidos os princípios e determinados temas clínicos entendidos pelos autores como prioritários para serem objeto de reflexão ética. Conforme apontado, não se verifica na literatura sobre a perspectiva do paciente que esses temas sejam os mais importantes para os pacientes. Ademais, embora reconheça-se que o Principialismo, com base na importância que o respeito à autonomia tem na ética em pesquisa, avançou na proteção da autonomia pessoal do paciente, quando se coteja com o panorama do paternalismo que lhe antecede, ao longo do tempo o Principialismo não tem contribuído para superá-lo, como será visto neste estudo.

Portanto, sugere-se que seja desenvolvida uma Bioética dos Cuidados em Saúde que tenha a relação entre profissional e paciente como seu componente ético, bem como a centralidade do paciente, entendendo que a ética em pesquisa é um campo completamente distinto dos cuidados em saúde, seja no que toca aos seus balizamentos éticos, à relação entre profissional e paciente/participante, e ao papel do paciente/participante. Ademais, a Bioética dos Cuidados em Saúde deve ter como objeto as questões cotidianas da prática clínica, como a comunicação entre profissional e paciente, a participação do paciente no processo de tomada de decisão e a afirmação da sua voz e do seu conhecimento experiencial. Desse modo, a Bioética dos Cuidados em Saúde deve ser uma abordagem que promova o empoderamento do paciente, reconhecendo- o em toda as suas dimensões, sociais, psicológicas, fisiológicas e culturais, comprometida com o enfrentamento de questões que realmente importam para os pacientes. Distancia-se, assim, de dilemas ou falsos dilemas que são excepcionais nos cuidados em saúde, mas ganharam visibilidade na história da bioética em razão de ter sido escrita sob o ponto de vista dos profissionais de saúde.

Centralidade do Paciente

O Principialismo não incorporou às suas discussões o CCP, até mesmo porque não diferencia o paciente e o participante da pesquisa, conforme apontado. O CCP é uma abordagem que confere ênfase à participação do paciente, à Tomada de Decisão Compartilhada (Hansson & Froding 2021), e ao conhecimento experiencial do paciente, considerado, atualmente, como complementar ao conhecimento do profissional e importante para o sucesso do tratamento e melhorias na qualidade do cuidado (Castro 2016). Temas esses que não são abordados pelo Principialismo, mormente enquanto ferramentas éticas de promoção da autonomia pessoal do paciente e dos seus direitos.

Assim, as decisões nos cuidados em saúde não devem ser guiadas pela concepção de bem para o paciente formulada pelo profissional, mas sim pelas necessidades, vontade e preferências do paciente, conforme a própria definição de CCP do Instituto de Medicina dos Estados Unidos: “uma parceria entre profissionais, pacientes e seus familiares para assegurar que as decisões respeitem as vontades, as necessidades e as preferências dos pacientes, e que esses sejam educados e apoiados em suas necessidades de tomar decisões e de participar do seu próprio cuidado” (Institute of Medicine 2001). Desse modo, o Principialismo desconsidera que as decisões não são norteadas pela ideia de bem do profissional, porque não é ele o decisor principal, mas sim o paciente. Em consequência, vários dilemas éticos são evocados no Principialismo sem na verdade se constituírem em um conflito sob a ótica do paciente, mas tão somente para o médico que deseja fazer valer a sua decisão, a despeito da decisão do paciente. Por exemplo, as questões de recusa do paciente podem ser tidas como dilemas morais para os médicos, mas não são para o paciente, que tão somente exerce seu direito à autodeterminação com a expectativa legítima de que seja respeitado.

O Principialismo não absorveu a transformação do cuidado em saúde para o CCP e o modelo biopsicossocial, até mesmo porque, como visto, não é um referencial específico para o cuidado em saúde, namedida em que tem como escopo lidar com questões de ética em pesquisa e de saúde pública. Com efeito, o CCP tem como proposta central promover uma relação de parceria entre profissional e paciente, fundamentado no paradigma que percebe o paciente sob a ótica biopsicossocial (Delaney 2018). O modelo biomédico ou técnico-científico dominou por muito tempo o cuidado em saúde, com a consequente negligência dos seus elementos psicossociais. O paciente era reduzido ao seu corpo físico, decomposto em partes, e ao médico cabia cuidar dessas partes desmembradas, com base em recursos ecnológicos (Jeffrey 2020). Assim

Assim, segundo o modelo biopsicossocial, o paciente e o cuidado não são vistos tão somente sob a óticadas suas repercussões biomédicas, por exemplo, aspectos relacionados às emoções e ao apoio do paciente são centrais. Ilustrando, estudo seminal realizado na Universidade de Stanford, nos anos oitenta, verificou que mulheres com câncer de mama metastático tinham maiores taxas de sobrevida quando eram participantes ativas de grupos de suporte que tinham espaço para expressarem suas emoções (Rakel 2018).

A Tomada de Decisão Compartilhada é um processo no qual profissionais e pacientes trabalham juntos para decidir sobre testes, tratamentos, manejo da sua condição, baseados nas evidências científicas e nas preferências informadas do paciente (Muscat 2020). O Principialismo trata o consentimento informado como a forma padrão de tomada de decisão do paciente e expressão da sua anuência (Beauchamp & Childress 2019), por conseguinte, verifica-se que não introduziu a Tomada de Decisão Compartilhada como a forma que melhor expressa a relação de parceria entre o profissional e o paciente, bem como a sua participação efetiva nas decisões acerca do seu cuidado. Vários países, incluindo Estados Unidos e Canadá, têm adotado intervenções multifacetadas, direcionadas a práticas e sistemas, visando implementar a Tomada de Decisão Compartilhada (Stiggelbout 2012), bem como os pacientes têm demonstrado sua preferência pela Tomada de Decisão Compartilhada (Kirkscey 2018). Portanto, chama a atenção o fato de que Principialismo ainda sustente que o consentimento informado é a melhor forma de expressão da autonomia pessoal do paciente.

Com efeito, o Principialismo ainda está preso à ideia de respeito à autonomia como não interferência, o que não se ajusta às abordagens da participação e do engajamento, que vão além do respeito à escolha do paciente. A não interferência não é o único modo de respeitar a autonomia e nem mesmo o mais importante. É essencial engajar o paciente e conferir-lhe apoio (Tonelli & Sullivan 2019). Desse modo, constata-se que o Principialismo ainda entende autonomia em uma perspectiva negativa, enquanto não invasão no espaço de decisão do paciente, o que não se coaduna com o novo paradigma nos cuidados em saúde que entende autonomia como promoção da participação, do engajamento e da tomada de decisão, mesmo em contextos nos quais o paciente tenha déficit decisional, consoante será abordado neste artigo.

Assimetria de poder na relação entre profissional de saúde e paciente

A ambiência de provisão de cuidados em saúde é caracterizada pela sua assimetria de poder (Sears 2010) e a presença de relações opressivas (Thesen 2005), o que consiste em um desafio significativo para que o paciente seja escutado e a sua fala seja levada seriamente em consideração. Desse modo, há que se buscar uma mudança no ambiente clínico quanto ao superdimensionamento da voz dos profissionais de saúde e das evidências biomédicas no encontro clínico, para se conferir equânime peso à voz e à experiência do paciente (Naldemirci et al 2021). Isso não significa deixar de reconhecer que o profissional sempre terá um papel específico e relevante no encontro clínico, notadamente quanto ao de aportar vidências científicas ao processo de tomada de decisão, de apoiar o paciente e de praticar atos que lhes ão privativos, como o diagnóstico e o prognóstico médico.

A relação de cuidado é naturalmente assimétrica (Churchill et al., 2014), notadamente em razão da assimetria de informação (Wu & Wang 2021) e da condição de vulnerabilidade acrescida do paciente e da sua suscetibilidade aos abusos de poder (Van Dijke et al. 2019). Esse contraste de poder pode conduzir o paciente a adotar um papel passivo no cuidado (Jeffrey 2020), o que deve ser uma das principais questões da bioética no âmbito da clínica e que passa ao largo do escrutínio do Principialismo.

O paciente abre a sua vida para o profissional, revela a sua intimidade, expõe seu corpo e narra a sua história, o que acarreta maior possibilidade de ser afetado na relação com o profissional, logo, suscetível ao risco de sofrer abusos. Thesen (2005) formula o conceito de opressão nos cuidados em saúde, entendendo-a como o oposto do empoderamento do paciente, porque acarreta o cerceamento da sua autodeterminação e suprime a sua voz. E, como parte desse contexto de opressão, aqueleque é o primido não reconhece a sua condição, por isso muitos pacientes não se percebem em tal condição, o ue s tornam mais vulneráveis ao poder médico (Thesen 2005).

A relação de cuidado em saúde é uma relação de poder, e isso não é bom ou ruim, necessariamente, depende de como esse poder é usado. Contudo, a menção ao poder e a termos correlatos são raros na literatura especializada, inclusive na Bioética (Thesen 2005). Mesmo abordagens bioéticas compreensivas, omo a de Halpern, tendem a não reconhecer a distribuição desigual de poder entre médicos e pacientes (Stefanello 2022). Nessa linha, comumente, quando se alude ao empoderamento do paciente na literatura a área da saúde, o foco recai sobre o auto manejo da sua condição de saúde, mudança de estilo de vida e ua educação para atingir resultados em saúde, mas, comumente, não está correlacionado com o poder o profissional (Thesen 2005). O Principialismo não traz como uma problemática ética nodal o empoderamento do paciente, bem com destaca-se que não é um tema recorrente na literatura bioética.

A opressão do paciente se reflete na sua exclusão do processo de tomada de decisão, da limitação da sua autodeterminação e da sua voz (Thesen 2005). O paciente ainda tem receio de fazer perguntas, com medo de sofrer represálias ou de ser tratado de forma brusca (Guggenbühl-Craig 2004). Com efeito, estigmatização, preconceitos e iniquidades continuam a impregnar a comunicação clínica. Pacientes são tidos como “incapazes de decidir, sem autonomia, vulneráveis sociais e psicologicamente frágeis”, stereótipos que prevalecem nos cuidados em saúde (Crichton et al., 2017). Profissionais de saúde, em rande medida, mantêm seus estereótipos, ideias preconcebidas e vieses sobre pacientes, o que faz com que seja atribuída mais credibilidade narrativa a certos pacientes e menos a outros na comunicação clínica, deixando alguns pacientes semserem ouvidos (Naldemirci et al 2021). Segundo Carel & Kidd (2017), a pessoa doente é usualmente considerada como cognitivamente afetada, emocionalmente comprometida ou existencialmente instável, o que faz com que seu testemunho sobre a sua condição seja considerado suspeito. Particularmente, pessoas que vivem com doença crônica são alvo de estereótipos ligados à doença (Carel & Kidd 2017), assim como pessoas com transtornos mentais, que são frequentemente descritas por termos desqualificantes, como “loucos, lunáticos e sem discernimento” (Crichton et al., 2017).

Por outro lado, os profissionais de saúde são tidos como epistemicamente privilegiados, sobre os quais recai a escolha da credibilidade a ser conferida a dado paciente. Ademais, tem-se a expectativa de que os pacientes façam o que os médicos dizem ou que respondam aquilo que é perguntado, mas dos médicos não se espera que façam aquilo que os pacientes dizem, bem como aos pacientes não é dado o espaço para irem além do que lhes foi questionado, endossando o privilégio epistêmico dos profissionais. Em casos de extremo paternalismo, os pacientes podem ter o seu papel de contribuir epistemicamente negado, assim, nega-se, também, credibilidade à sua perspectiva (Carel & Kidd 2017).

Schuster, estudiosa do tema da assimetria e da reciprocidade entre profissional e paciente, assinalou que para a assimetria ser reduzida é necessário enfatizar a reciprocidade por meio do reconhecimento da humanidade compartilhada entre ambos e a alteridade do paciente (Schuster & Ekman 2022), ou seja, onceitos morais que deveriam ser balizadores de reflexões de uma Bioética dos Cuidados em Saúde.

O Principialismo não confere espaço adequado à reflexão sobre a assimetria de poder e a opressão no contexto dos cuidados em saúde, bem como à voz do paciente. O Principialismo alude à condição dependente do paciente, à posição de autoridade do profissional e que, em algumas situações, a autoridade do profissional e a autonomia do paciente são incompatíveis, mas que isso se dá não porque os dois conceitos sejam irreconciliáveis, mas sim porque a autoridade não foi adequadamente apresentada ou aceita (Beauchamp & Childress 2019). Para além dessa passagem, não há uma análise da relação de poder que marcou a história da relação profissional-paciente e seus efeitos atuais, onsiderações éticas sobre a injustiça epistêmica e os abusos cometidos contra os pacientes. Assim, o Principialismo pretende trazer balizamentos éticos para a resolução de conflitos nos cuidados em saúde sem levar em conta o pano de fundo no qual esses conflitos emergem, constituindo-se em uma corpo de princípios e regras assépticos, não “contaminados” pelo poder que os profissionais exercem sobre os acientes, e a sua consequente posição subalterna.

Considere-se, ainda, que o Principialismo extraidos seus quatro princípios particular categoria de conceitos morais, como as regras morais, as quais geram obrigações para os profissionais, como as de não infringir danos ou a obrigação de ajudar os pacientes. Em consequência, o Principialismo considera os direitos como meras sombras das obrigações, ao adotar uma perspectiva kantiana (Summer et al., Lafollette, Persson 2013), segundo a qual os direitos derivam das obrigações e não o inverso. Assim, essa erspectiva kantiana encampada pelo Principialismo confere centralidade ao profissional como agente moral e não ao paciente, enquanto titular do direito. Como apontado, o Principialismo é uma ética édica ão dos cuidados em saúde, ou seja, estabelece princípios e regras para os profissionais, como se fossem os únicos agentes morais das decisões nos cuidados em saúde. Alija-se, assim, o paciente das questões morais, até mesmo porque, segundo o Principialismo, é o profissional que detecta, a partir da sua erspectiva, o que é ou não um dilema ou questão moral. Desse modo, nota-se que o Principialismo eproduz a assimetria de poder presente no cuidados em saúde em sua formulação teórica, não onferindo voz ao paciente como agente moral apto a identificar quais são os conflitos ou dilemas que evem ser objeto de reflexão e de prescrição bioética.

Paternalismo e objetificação do paciente

O paternalismo pode ser definido como a restrição da autonomia de alguém, sem o seu consentimento, sob o argumento de que alguma coisa é melhor ou menos prejudicial (Goold & Herring 2019). No contexto dos cuidados em saúde, no paternalismo, o paciente é objetificado, isto é, torna-se objeto do bem, que o profissional acredita que deve ser feito, ou do dano, que deve ser evitado. O Principialismo parte de uma distinção entre paternalismo fraco e forte para justificá-lo em algumas situações. O aternalismo fraco é demarcado como a intervenção baseada na beneficência ou na não maleficência, com objetivo de evitar uma conduta involuntária do paciente, em razão de não ser capaz de consentir de forma informada, apresentar quadro de depressão grave ou de ser adicto. O paternalismo forte restringe as informações ou o direito de decisão do paciente. Por exemplo, o paciente adulto capaz que deseja morrer em sua casa é proibido de sair do hospital ou não é informado pelo médico, sob a alegação de que saber sobre seu diagnóstico o conduzirá a um estado de depressão (Beauchamp & Childress 2019).

Quanto ao paternalismo fraco, segundo Goold e Herring (2019) esse é equivocado, pois quando o paciente tem déficit decisional, não cabe substituir a sua decisão com base na beneficência ou na não maleficência, mas sim promover a sua autonomia pessoal, isto é, caberia apoiar esses pacientes a participarem da decisão. No que tange ao paternalismo forte, não cabe ao profissional decidir qual risco o paciente pode tomar, todos têm o direito decidir se querem ou não correr riscos e quais riscos. Por conseguinte, no caso da informação sobre o diagnostico ou prognóstico desfavorável, cabe ao profissional indagar ao paciente o quanto deseja saber sobre a sua condição de saúde e não presumir que ele não consegue lidar com a realidade. Negar isso ao paciente é torná-lo objeto de proteção, mas, ma vez mais, objetificando-o.

O CCP se contrapõe ao paternalismo e visa substituílo, ou seja, do “médico sabe o que é melhor” para o “paciente sabe o que é melhor”. O CCP aponta para o fato de que o paternalismo suprime o poder do aciente de tomar decisão e nega-lhe a sua condição de humano, objetifica-o (Delaney 2018). Nessa linha, aternalismo, comumente, lança mão da beneficência do profissional para justificar que a sua decisão deve prevalecer (Jeffrey 2020).

A visão do paciente como objeto da intervenção se conecta com a posição ocupada pelo objeto de conhecimento das Ciências Naturais, estendida para a Medicina (Thesen 2005). Isto é, o paciente é um objeto do conhecimento e da intervenção médica e não um sujeito de direitos e agente moral e do róprio cuidado. Essa visão das Ciências Naturais, acoplada ao modelo biomédico, torna o paciente “um objeto ou um número”, o que consiste em uma das reclamações mais frequente feitas pelos pacientes (Churchill et al. 2014). A objetificação do paciente, um dos temas mais importantes para os pacientes, não squadrinhado pelo Principialismo, negligenciando uma questão ética do cotidiano dos cuidados em aúde e a voz do paciente acerca do que é moralmente saliente para ser debatido pela bioética.

O paciente não é um mero recipiente da ação terapêutica (Sullivan 2017), mas o agente do seu cuidado, cujo bem-estar e qualidade de vida constituem a sua finalidade. O reconhecimento do paciente como sujeito de direitos e detentor de voz confere outra dinâmica à relação com o profissional, além de arantir-lhe uma posição ética de decisor. Em consequência, os dilemas que contrapõem o princípio da eneficência e o princípio do respeito à autonomia não fazem sentido do ponto de vista do paciente. Não á dilema para o paciente. Ou seja, a obrigação do médico de fazer o bem deriva do direito do paciente de não sofrer danos ou do direito de não ser submetido a tratamento desumano ou degradante, conseguintemente, a obrigação profissional de fazer o bem não existe por si só, independentemente do paciente a quem o bem se destina. Caso se pense assim, o paciente se tornaria um objeto e não sujeito e ma interação humana horizontal. Isto é, o paciente seria um recipiente do bem que não é determinado por si próprio, mas pelo profissional de saúde. A ideia de que a obrigação profissional é descolada do direito correlato é uma visão dos códigos deontológicos, que estabelecem condutas profissionais gerais ara regular a atuação de determinada profissão. Quando se trata de bioética, a obrigação do profissional e saúde apenas existe porque existe uma pessoa, o paciente, cujos direitos, interesses e necessidades nsejam obrigações, são essas que justificam o atuar ético do profissional.

Assim, quanto aos falsos dilemas, traz-se o exemplo do paciente adulto e capaz com câncer metastático que não deseja mais procedimentos fúteis. O médico insiste em fazê-los, alega o bem do paciente e faz uso do princípio da beneficência. Como dito, o paciente não é um objeto do bem do médico, mas uma essoa que tem suas crenças, vontade e preferências, e a intervenção médica apenas se justifica quando a ecisão é tomada em conjunto com o paciente. Portanto, trata-se de um falso dilema, na medida em que a brigação de fazer o bem não existe por si só, é decorrente do direito do paciente de decidir como quer er cuidado, por essa razão, o bem é modelado pelo próprio paciente e não pelo profissional. A bjetificação do paciente leva a um princípio da beneficência descolado das suas necessidades, vontade e referências, conferindo ao médico um poder extremo de ditar para o paciente o que é o bem.

Ademais, o Principialismo, ao reproduzir esse falso dilema, desconsidera que o papel do profissional não é salvar a vida ou curar o paciente, mas sim construir um plano terapêutico que acolha sua visão de mundo, engajando-se empaticamente nos estados mentais, incluso emoções, do paciente. Atualmente, não há espaço ético para se focar na busca de uma intervenção a qualquer custo, desconsiderando- se ue o paciente é uma pessoa com necessidades não apenas biomédicas, mas também psicológicas, spirituais e culturais. Esse falso dilema se reproduz no Direito, quando se alega que o médico está efendendo o direito à vida do paciente diante de uma recusa. Mais uma vez, tem- -se a objetificação do aciente, que é impedido de tomar decisões com base em seu próprio direito à autodeterminação, ou seja, az-se uso do direito do paciente para privar-lhe de direitos. Assim, lança- -se mão do direito do paciente ontra ele próprio, criando um contrassenso jurídico inaceitável.

Outro exemplo de falso dilema emanado do Principialismo diz respeito ao médico que mente para o paciente com câncer, ao dizer que não tem nenhum problema de saúde, “a sua saúde está tão boa quanto há dez anos atrás” com o intuito de não lhe causar estresse ou angustia. Percebe-se que mais uma vez recorre-se ao princípio da beneficência para restringir o direito à informação do paciente e conferir-lhe um tratamento não consentâneo com o seu reconhecimento como agente moral, apto a tomar decisões sobre a própria vida, inclusive a de não saber sobre a progressão da sua doença. Desse modo, não cabe ao médico mentir para o paciente, mas sim pactuar com ele acerca de como as nformações serão transmitidas e o quanto deseja saber em cada fase do seu tratamento. Mais uma vez, enfatiza-se que o Principialismo não incorporou a ideia de relação de parceria entre profissional e parceria, ainda mantém a relação vertical, paternalista ou consumerista, na qual o médico informa e o paciente decide.

O Principialismo tem como agente moral os profissionais de saúde, na medida em que os princípios do respeito à autonomia, da beneficência e não maleficência têm como destinatário o profissional, ou seja, é le quem vai respeitar ou não a autonomia do paciente, fazer-lhe bem ou mal. Embora o Principialismo echace o paternalismo em diversas passagens, o fato de situar o profissional como o agente moral único os cuidados em saúde e de não incluir o paciente como agente moral e decisor último acaba por adotar ma posição paternalista, excluindo o paciente como o emanador das obrigações destinadas ao rofissional, na medida em que lhe cabe exercer seus direitos conforme suas determinações pessoais.

Direitos humanos com regras ético-jurídica prima facie e a capacidade decisional dos pacientes

Os pacientes têm direitos humanos, no contexto dos cuidados em saúde, extraídos das normativas internacionais, como o direito de não ser torturado, nem submetido a tratamento desumano e egradante, o direito de não ser discriminado e o direito à vida privada, que engloba o direito à utodeterminação. Em consequência, os profissionais devem respeitar os direitos humanos dos pacientes, omo limites ético-jurídicos prima facie. Com efeito, os direitos estabelecem aquilo que se espera e se exige do outro, o qual tem a obrigação de atender a demanda extraía do direito do seu titular (Summer 2013). Quando se trata da aplicação do Principialismo, é inaceitável que se justifique a violação do direito ecusa de procedimento e tratamentos por paciente adulto e capaz com base em princípios estabelecidos or uma teoria, como, por exemplo, alegar que no caso da recusa do paciente adulto capaz há “conflito ntre o princípio do respeito à autonomia do paciente e o princípio da beneficência”. Os direitos humanos ão construções éticas que determinam comandos para todos, por conseguinte, os profissionais não têm a rerrogativa especial de violá-los com base em sua ideia de bem, fundamentados em dada teoria da ioética, como o Principialismo. Todo nós devemos respeitar os direitos humanos, logo, os profissionais de aúde não gozam do privilégio de escolher respeitá-los ou não.

Particularmente, no que tange à capacidade decisional dos pacientes, conforme o referencial dos direitos umanos, todas as pessoas têm direito à autodeterminação, notadamente após o advento da Convenção obre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), adotada pela Organização das Nações Unidas em 017. A capacidade jurídica e a capacidade decisional de todas as pessoas adultas são, portanto, resumidas, logo, o recurso à decisão substituta é contrária às normas de direitos humanos, devendo ser a essoa cuja habilidade decisional é mitigada ser apoiada (Comité sobre los Derechos de las Personas con iscapacidad 2014) no seu processo de tomada de decisão. Além da nova concepção de capacidade urídica, a CDPD trouxe outro avanço significativo para a promoção dos direitos humanos de pessoas com nabilidades decisionais, qual seja a supremacia da decisão apoiada sobre a decisão substituta Albuquerque 2021). Com efeito, o Artigo 12 da CDPD estabelece que “os Estados Partes tomarão edidas propriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de ua capacidade jurídica” (Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad 2014). Desse modo, verifica-se que, a partir da CDPD, os pacientes com inabilidades decisionais têm direito a mecanismos de poio para a tomada de decisão, com vistas a serem apoiados para decidir sobre seus cuidados em saúde.

Em completo desacordo com a CDPD e as normas de direitos humanos, o Principialismo afirma obrigações de respeito à autonomia não se estendem às pessoas que não podem agir de forma uficientemente autônoma, porque são, por exemplo, imaturas, incapacitadas, ignorantes, coercitivas ou exploradas. Infantes, indivíduos irracionalmente suicidas, e pessoas dependentes de drogas, são exemplos” (Beauchamp & Childress 2019:108). Essa visão do Principialismo, sobre esses pacientes e as essoas que apresentam algum tipo de inabilidade decisional, se mostra discriminatória e estigmatizante, ompletamente dissonante dos comandos ético-jurídicos extraídos dos direitos humanos. Todas as essoas ão capazes, a prova da sua incapacidade decisional e da impossibilidade de recorrer aos apoios de omada de decisão é necessária para que se possa afastar a sua autonomia pessoal. No mesmo sentido, á muito se entende que a capacidade decisional de uma pessoa não pode ser prejulgada pela acionalidade da decisão. Essa visão adotada pelo Principialismo não se compatibiliza com o marco dos direitos humanos e abre um caminho para que o profissional desrespeite a decisão do paciente, com ase o julgamento da racionalidade ou não da decisão, o que não é concebível sob a ótica do direito do paciente de decidir sobre a própria saúde e vida, sem precisar justificar suas decisões.

O Principialismo parte de princípios e desses são extraídas regras. Do princípio do respeito à autonomia, regras morais específicas são estabelecidas, como dizer a verdade; respeito à privacidade dos outros; proteção da informação confidencial e obtenção do consentimento do paciente para intervenções (Beauchamp & Childress 2019). Para Beauchamp e Childress (2019), os direitos derivam das obrigações e ssa concepção permeia toda o referencial. No entanto, para o referencial dos direitos humanos dos acientes (Albuquerque 2016), dos direitos são geradas obrigações, ou seja, o foco está nos direitos, cujas brigações existem apenas caso os primeiros estejam presentes. O Principialismo é uma abordagem para ma ética profissional, destinada à regulação dos comportamentos dos profissionais de saúde (Churchill et l. 2014), por isso privilegia as obrigações dos profissionais em detrimento dos direitos dos pacientes, mesmo que essas obrigações sejam vazias, ou seja, mera expressão de uma ética narcísica dos profissionais para eles mesmos, sem considerar o propósito de uma ética balizadora dos cuidados em saúde.

Embora o Principialismo tenha representado um avanço ético no campo dos cuidados em saúde no momento histórico em que foi formulado, atualmente, tem-se o CCP e a Tomada de Decisão Compartilhada como abordagens teórico-práticas que expressam a visão da relação entre profissional e paciente como de parceria, na qual o paciente protagoniza as decisões sobre seus cuidados. O Principialismo não reconhece que “ser paciente é uma experiencia moral única, com sua própria estrutura, ritmo e horizonte.” (Churchill et al. 2014:115). nem se assenta sobre a acepção de que a autonomia pessoal do paciente é relacional, ou seja, é forjada no seio dessa relação e imbricada com as ações dos profissionais tendentes a emponderá-lo. Observa- se que o Principialismo não é uma ética apropriada para os cuidados em saúde, sobretudo por não conferir nenhum papel específico ao paciente, muito menos a centralidade no cuidado, bem como não contribui para a melhoria da experiência do paciente (Jeffrey 2020). Ademais, o Principialismo trata o julgamento moral de forma apartada das emoções morais e da empatia, que não encontram espaço em seus princípios (Churchill et al. 2014). Por conseguinte, necessita-se uma nova abordagem bioética que traduza o novo paradigma dos cuidados em saúde no campo da bioética, como a Bioética dos Cuidados em Saúde.

Considerações Finais

Surpreende que ainda os quatro princípios do Principialismo sejam confundidos com a bioética e que sejam o foco dos estudos nas disciplinas de bioética dos cursos de graduação da área da saúde e mesmo de Pós-Graduação em Bioética. Esse sucesso inegável do Principialismo já foi objeto de análise em variadas pesquisas sobre o tema, assim como inúmeras críticas que tem recebido ao longo do tempo. Neste artigo partiu-se do entendimento de que quando o Principialismo foi criado na década de setenta trouxe importantes mudanças em relação ao paternalismo e à autonomia pessoal do paciente. Não obstante tenha se atualizado em suas edições posteriores, o Principialismo não incorporou o novo paradigma nos cuidados em saúde, ou seja, continuou sendo uma ética que estabelece princípios e egras ara guiar o que os profissionais devem fazer a partir do entendimento deles do que sejam problemas e ilemas morais nos cuidados em saúde. O paciente não é protagonista do cuidado no Principialismo, nem gente moral. A visão que o Principialismo traz de bioética é construída com base em questões que são ifíceis para os profissionais, mas não para os pacientes. E são difíceis pelo fato do Principialismo situar os ireitos dos pacientes como sombras das obrigações dos profissionais, como se essas existissem e fossem egitimas a despeito dos pacientes. Essa acepção acarreta um processo de objetificação dos pacientes e os oloca numa posição de objeto do cuidado e da deliberação ética. Ademais, o Principialismo ignora as rincipais questões que são difíceis para os pacientes, como a comunicação com o profissional, a sua escuta e o modo como são tratados, bem como passa ao largo do contexto de assimetria de poder e de njustiça epistêmica que caracteriza a relação entre profissional de saúde e paciente. Portanto, o rincipialismo tem contribuído para perpetuar o paternalismo nos cuidados em saúde, mesmo que não enha sido esse seu objetivo final, porquanto traduz em sua teoria o privilégio da voz do profissional, na edida em que são as suas obrigações que ditam a deliberação ética e não o direito, as necessidades, a ontade e as preferências dos pacientes. Embora não tenha sido objeto deste artigo desenvolver uma ioética dos Cuidados em Saúde, alicerçada no novo paradigma dos cuidados em saúde, aponta-se para a ua necessidade de modo a contribuir para que o encontro clínico entre profissionais e pacientes seja eticamente balizado por uma nova bioética comprometida com os avanços éticos e jurídicos alcançados elos movimentos do CCP, da Tomada de Decisão Compartilhada e da parceria entre profissional e aciente. É urgente que a bioética latino-americana supere o Principialismo enquanto principal corrente da ioética na clínica e se alicerce nos direitos humanos e em um novo paradigma, conferindo voz e poder aos pacientes.

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